5.8.11

"Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que me fita são tristes. Sorri com brilho do papel e as cores da sua face são encarnado. O céu por trás dela é azul de fazenda clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por sobre cuja expressão postal os olhos me fitam sempre com uma grande pena. O braço que segura as flores lembra-me o de alguém. O vestido ou blusa é aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes: fitam-me do fundo da realidade litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a primavera. Os seus olhos tristes são grandes, mas nem é por isso. Separo-me de defronte da montra com uma grande violência sobre os pés. Atravesso a rua e volto-me com uma revolta impotente. Ela segura ainda a primavera que lhe deram e os seus olhos são tristes como o que eu não tenho na vida. Vista à distância a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor de mais rosa contornando o alto do cabelo; não tinha reparado. Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, o grito clandestino de haver alma."


- Pessoa, em O livro do desassossego

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